sábado, 31 de janeiro de 2009

OS FRUTOS PROMETIDOS

Seguros são os frutos prometidos

Que colherás de tanto semeares,

Entre as searas abertas pelos dedos,

Que o vento ondulará quando quiseres.




Poema: apm

ERA UM TEMPO

Onde os búzios que em tudo pareciam

o regresso ao tempo das sereias?

Onde o fogo das mãos que se queimavam

junto aos corpos que quase enlouqueciam?


Onde o vento cortando inutilmente

as arestas que cedo os revestiam?

Onde a lua rasgada de desejos,

eclipse de silêncio por momentos?


Era um tempo, alento da manhã,

em que as árvores cobriam prontamente

teus seios, vestígios de romã.


Foto e poemas: apm

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

CANTO VIAJEIRO

I

Foi no tojo das palavras,

no rigor da intenção,

que rebentei as amarras,

penetrando no que são.


Cortei as asas do tempo,

perfumei o meu olhar,

e adormeci ao relento,

sem ter pressa de acordar.



II

Como um vulgar marinheiro,

inventei-me num porão,

percorrendo o mundo inteiro.


Os portos foram surgindo,

mas nem por isso mais perto

me encontrei do destino,

como se fosse sumindo.



III

Percorri tudo, se é tudo

o que posso imaginar,

descobri novas paragens,

por cada nesga do mar,

viajei por latitudes,

ainda por localizar.



IV

Dobrei o cabo da esperança,

fundei o meu universo,

temi o vento e a bonança.


Não fui quixote, nem pança,

para tal, faltou-me o jeito.



V

Por fim, sentei-me num canto

- entre rio e outro rio,

entre mar e outro mar -

cansado de correr tanto,

indeciso no lugar,

aí fiquei até hoje.




Foto e poema: apm

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

DESEJO

Apetitoso o fruto que desejo,

Inominado, fresco e sedutor:

Prouvera fosse o tempo das cerejas,

Soubera ser o tempo do calor.

Das giestas não falo porque sei

O perfume agreste que despertam.




Foto e poema: apm

MITO PRIMORDIAL

Do rosto emergiu uma flor,

A flor desabrochou como queria,

Assim nasceu o Amor,

E dele a Noite e o Dia.




Foto e poema: apm


Post separador entre a Antologia "Verdes Anos" e poemas de apm

2. JOSÉ GOMES FERREIRA

VIVER SEMPRE TAMBÉM CANSA


Viver sempre também cansa.

O sol é sempre o mesmo e o céu azul

ora é azul, nitidamente azul,

ora é cinzento, negro, quase-verde...

Mas nunca tem a cor inesperada.



O mundo não se modifica.

As árvores dão flores,

Folhas, frutos e pássaros

como máquinas verdes.



As paisagens também não se transformam.

Não cai neve vermelha,

não há flores que voem,

a lua não tem olhos

e ninguém vai pintar olhos à lua.


Tudo é igual, mecânico e exacto.


Ainda por cima os homens são os homens.

Soluçam, bebem, riem e digerem

sem imaginação.


E há bairros miseráveis sempre os mesmos,

discursos de Mussolini,

guerras, orgulhos em transe,

automóveis de corrida...


E obrigam-me a viver até à Morte!


Pois não era mais humano

morrer por um bocadinho,

de vez em quando,

e recomeçar depois,

achando tudo mais novo?


Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,

morrer em cima dum divã

com a cabeça sobre uma almofada,

confiante e sereno por saber

que tu velavas, meu amor do Norte.


Quando viessem perguntar por mim,

havias de dizer com teu sorriso

onde arde um coração em melodia:

“Matou-se esta manhã.

Agora não o vou ressuscitar

por uma bagatela.”



E virias depois, suavemente,

velar por mim, subtil e cuidadosa,

pé ante pé, não fosses acordar

a Morte ainda menina no meu colo...



De José Gomes Ferreira (1900-1985), o autor das Aventuras de João Sem Medo e do Poeta Militante escolhemos um dos seus primeiros poemas escritos "pura seda das palavras"

domingo, 25 de janeiro de 2009

1. ÁLVARO FEIJÓ

OS DOIS SONETOS DE AMOR DA HORA TRISTE

1

Quando eu morrer – e hei-de morrer primeiro

do que tu – não deixes fechar-me os olhos

meu Amor. Continua a espelhar-te nos meus olhos

e ver-te-ás de corpo inteiro.




como quando sorrias no meu colo.

E, ao veres que tenho toda a tua imagem

dentro de mim, se, então, tiveres coragem

fecha-me os olhos com um beijo.




Eu , Marco Pólo,

farei a nebulosa travessia

e o rastro da minha barca

segui-lo-ás em pensamento. Abarca

nele o mar inteiro, o porto, a ria...

E, se me vires chegar ao cais dos céus,

ver-me-ás, debruçado sobre as ondas, para dizer-te adeus.


2

Não um adeus distante

ou um adeus de quem não torna cá,

nem espera tornar. Um adeus de até já,

como a algúem que se espera a cada instante.




Que eu voltarei. Eu sei que hei-de voltar

de novo para ti, no mesmo barco

sem remos e sem velas, pelo charco

azul do céu, cansado de lá estar.




E viverei em ti como um eflúvio, uma recordação.

E não quero que chores para fora,

Amor, que tu bem sabes que quem chora

assim, mente. E se quiseres partir e o coração

to peça, diz-mo. A travessia é longa... Não atino

talvez na rota. Que nos importa, aos dois, ir sem destino.




Álvaro Feijó (1917-1941) publicou um único livro de poesia "Corsário", mas a sua voz apesar da sua curta vida deixou uma marca na poesia portuguesa.

ANTOLOGIA POÉTICA "VERDES ANOS" (1964/1974)



ANTOLOGIA VERDES ANOS
Com este post inicia-se uma breve antologia poética, uma visão singular, a poesia vivida entre 1964 e 1974, a que dei o nome de "VERDES ANOS", numa evoção do belíssimo tema de Carlos Paredes, 35 anos passados do 25 de Abril.

NAVEGADORES

Se o orvalho cai generosamente,

tecendo um manto fresco e sedutor

que nos aproxima irresistivelmente,

mede a ampulheta o que se sente?


Muito já se disse sobre o tempo

- eficaz tempero de alma ou desespero -

e, afinal, somos só navegadores.




Foto e poema: apm

sábado, 24 de janeiro de 2009

COMO SE FORA UM COLAR

Metódica, Cibele colhia a escassa chuva

na concha das suas mãos vazias.


Com os dedos esguios, habilmente, entrelaça-a,

pingo a pingo, como se fora um colar. Por fim, esbelta

e delicada, afoita-se, por entre o agreste das aroeiras,

mar adentro, oceano acabado de lavrar.




Poema: apm

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009





Ilustração adaptada: ivone ralha

NUM SÓ PONTO

Fixavam os olhos num só ponto,

e esse ponto quase não se via,

como que coberto por um manto

de espesso nevoeiro ou fantasia.


Nem a rudeza do vento,

ou o saber da razão,

lhes suspende o pensamento.

Pelo menos, por enquanto.




Poema: apm
Foto: reinaldo rodrigues para o livro "Pescadores de Mar Muito"

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

PESCADORES

Os rostos emergem em contraluz, enquanto

as mãos vão desenhando mecânicos movimentos,

aprendidos numa vida inteira de labuta.


As palavras, instigadas pela maresia,

soltam-se fluidas, ávidas de colheita de

ouvinte atento, adornadas de metáforas que

a memória ternamente fixara.


São assim - Cibele - os pescadores: faunos rodeados

de medusas e um mar imenso a navegar.




Poema: apm


ilustração de Ivone Ralha para o livro "Pescadores de Mar Muito"

domingo, 18 de janeiro de 2009

AS PÉTALAS DA VIDA

Acaricio os teus dedos longos suspensos

sobre mármore Carrara. A emoção do simples

contacto, o fascínio das cores refractados no

cristal líquido dos teus olhos húmidos,

perduram ainda, cobrindo de matizes

a face oculta das pétalas da vida.


Os palácios Cibele - são uma invenção

dos bárbaros, pois neles as pessoas

estão irremediavelmente longe umas das

outras, os candelabros apenas tingindo

de opacidade e ilusão.


De futuro, sempre aparecerás vestida

de orquídea, os olhos marejados

de verde, o corpo entreaberto, a

tensão serena das mãos e do rosto.



Foto e poema: apm

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

FLOR DESEJADA

Nas asas do vento, criei uma flor

cercada de desejos e aguardei,

obstinado, a Primavera.


Passada a época das chuvas, liberta

a memória da espuma das palavras, um

sorriso cúmplice, inebriante, anuncia

discretamente um novo tempo,

táctil e cálido, rodeado de aromas

inesperados.


O fogo dos sentidos, Cibele, necessita,

como o vidro, mil paixões.



Foto e poema: apm

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

O TEMPO

Indulgente o tempo se recria, misterioso

e sagaz, furtivo à mutante luz do dia

ou aos inesperados requebros das marés,

na cadência volátil dos sentidos.



Muitos foram os instrumentos inventados,

da vetusta ampulheta ao relógio de quartzo,

mas é – Cibele – a tua pele suave e delicada,

a mais fiável medida de ternura.



Foto e poema: apm

PARA ALÉM DO MUSGO

Cibele criara, na refracção do medo,

a emoção e assomava, tímida,

entre os dedos, uma flor inominada.

Nos lábios circula-lhe um sorriso, enquanto

recorda tranquilamente a infância:

"Que luz se oculta por detrás do arco-íris?

Que ilumina os poetas, suscita adesões,

desperta os sentidos? Para além do musgo,

que se esconde entre as pedras?"




Foto e poema:apm

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

DANÇA DAS CORES

Está de moda, dizes, o fogo de artifício,

cores e efeitos, sob um céu estrelar.


No sentido inverso à direcção do vento,

entre as amuradas dos navios ancorados,

sopra uma inesperada brisa terna e cálida,

que afaga delicadamente os nossos corpos.


Nesta dança de cores e sentimentos,

é a festa da luz, rodízio de ternura,

do azul ao cinzento, forma pura.




poema: apm


Foto: Jal

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

CHEGARA, ENFIM, O VERÃO

Largámos barlavento, entre o calor

e o vento de feição, que as marés vivas

caucionavam. Chegara, enfim, o Verão.


Rompemos porto dentro, em enseada

amena, e um Outono de monção

inundou de alegria o perfume da

vida, céleres no inesperado da mudança

de rota, impávidos face à junção

de ventos contrários.


Quantas pérolas, Cibele, é necessário

juntar para conceber o sonho e

partilhar a luz, que o sol refracta

no arco-íris dos teus olhos húmidos?



Foto e poema: apm

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

NAS FÍMBRIAS DOS SAPAIS

Nas fímbrias dos sapais, garças boieiras

erguem-se em bandos, solitárias e

delicadas, testemunhos frágeis

dos frutos do trabalho

e afeição.


Foram instantes breves, esplenderosos,

um pouco de maresia em fim de

tarde. Pelas faces, serenas,

espraiam-se esteiros em mansas

ondas de desejo.



Foto e poema: apm

sábado, 3 de janeiro de 2009

NESSES LUGARES EU TEÇO

Os sentimentos, Cibele, são paisagens,

húmus, campos de semeadura, se contêm

a natureza honesta do granito.


Nesses lugares eu teço, sem rebuço de

olhares. As mãos ganham, então, um

sentido mágico: entrelaçam-se, procuram

o âmago do tempo nas profundezas

da terra, cruzam-se e descruzam-se

desordenadamente.


Nesses lugares, os olhos apelam

ao sonho, à viagem, à maresia,

dos sentidos, assim o luar liberte

o iodo, agreste perfume das marés.



Foto e poema: apm

ENTRE O VAZIO E A COR

Caminharás entre os astros, deambulando

entre o vazio e a cor, procurando

o fogo nos seixos húmidos do mar.


Meditarás os antigos: a ampulheta

desvenda o tempo, que circunscreve,

secretamente, deixando um rasto de luz fria.


É isto - Cibele - o paradoxo cruel

dos sentimentos: o poder do amor

gerando o seu contrário, e o contrário

imobilizado por pudor.



Foto e poema: apm