sexta-feira, 22 de julho de 2011
O SEGREDO DAS PALAVRAS
O sonho, Cibele, é uma taça, uma flor ignota, um desejo imenso que persiste,
mesmo se a dor ao colhê-lo o ignore. Cativo, neste lugar, perco a exacta noção do ser e do não ser,
do tudo ou do nada,
(se é que o todo pode estar circunscrito à palavra…)
Procurarás as estrelas, que iluminarão o caminho. Se solitário, a luz é mais intensa.
Despojada de tudo, encontrarás o segredo das palavras: ternura, amor, ou apenas sede
e um sereno gesto a partilhar
na colheita de uma rosa brava.
Arlindo Mota Foto: apm
quinta-feira, 14 de julho de 2011
DAQUELE PRIMEIRO DIA…
Disseste que os teus olhos já não conseguiam debruar a luz como faziam antigamente; que agora tacteiam a memória e as mãos ainda não perderam o seu sentido táctil, mas enganam-se frequentemente na paisagem.
Não esqueceste a volúpia, a fragrância do desejo, entre fráguas e a verdura das encostas, por entre a limpidez do murmúrio das águas. Por isso manténs as portas entreabertas e subsiste no teu colo uma infância por crescer. Abrigar-me-ás decerto em noites de lua cheia. Habituado ao ritmo dos sapais esperarei a próxima maré para te acolher, tufos de verde acariciarão os teus cabelos em reflexos desfocados pelo movimento lânguido das águas do estuário.
Noutro tempo, a tua voz tinha sempre um timbre inconfundível, prenhe de iodo e limos. Eu aguardava apenas a ténue luz dos vaga-lumes para assistir ansioso à tua chegada, roupas coladas ao corpo naquele teu jeito insinuante de faz-de-conta. Fora, assim, a nossa iniciação…ainda hoje, sinto o movimento das tranças presas no exacto momento em que um inesperado eclipse do luar deixara a tua pele, deliciosamente branca, nas minhas mãos acabadas de acordar. Surripiei-te então, Cibele, tudo o que tinhas e comigo guardei – precioso bem! – uma vermelha flor liquefeita daquele primeiro dia em que fiz amor contigo…
Arlindo Mota
Foto: apm
quarta-feira, 13 de julho de 2011
POETA DO MÊS: ANTÓNIO OSÓRIO
Retrato do Autor
Aguarela de Mário Botas
26/12/1982
Quando sinto de noite
o teu calor dormente
e devagar
para que não despertes
digo: cedro azul,
terra vegetal,
ou só
amor, amor;
quando te acaricio
e devagar
para que não despertes
tomo na mão direita
as duas fontes, iguais, da vida,
procuro a nescente
e adormeço
nela essa mão depositando.
António Osório
(Nascido em Setúbal em 1933, António Osório é um dos mais notáveis poetas portugueses vivos. Advogado foi um prestigiado bastonário. Poeta tem uma obra cada vez mais reconhecida pela crítica, apesar do perfil discreto de que faz gala. Com a devida vénia seleccionámos um poema que aqui reproduzimos do seu livro O LUGAR DO AMOR, editado pelo Círculo de Poesia, da Moraes Editores, em 1985.)
quinta-feira, 7 de julho de 2011
FUGAZ
FUGAZ
Exíguo, lhe disse alguém, reflectindo sobre o tempo
e algum desdém…
Mas lá foi crescendo, crescendo, consoante a terra, o húmus e as circunstâncias,
aquele tronco, agora forte, robusto como a mãe…
“Sou como o espaço, o horizonte, o mundo…” rejubilou.
E foi rodando, rodando, rodando sempre, na esperança que antevia, até que,
subitamente, se deteve junto a um amontoado de ramos frágeis, inertes, prostrados.
Aí, caindo de vez em si, decepcionado, humildemente balbuciou:
“Afinal...não passo de um segundo”
arlindo mota
quarta-feira, 6 de julho de 2011
LUZ QUE ALUMIA
sábado, 2 de julho de 2011
PAULO ASSIM: Retrato a Sépia
O meu avô tinha a tez dos mouros e o ar sereno
de quem descasca laranjas pela madrugada.
Falava-me do mar como quem olha
para os sulcos sibilinos das mãos.
Os peixes bebem toda a água do mar e não sabem.
Se soubessem, dizia o meu avô, quereriam ser homens.
Mas os homens têm já todo o mar nos olhos, sobretudo quando choram,
e se os peixes soubessem disso talvez preferissem ser pássaros,
que é o que os homens desejam ser quando desafiam o mar.
(...)
Na sala do meu avô havia um búzio
que me cabia na concha das duas mãos.
Se o aproximasse do ouvido,
aproximava o mar inteiro.
Paulo Assim
(in Retrato a Sépia, livro do autor recentemente distiguido com o prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, de cujo júri fiz parte, com João Reis Ribeiro e José António Chocolate Contradanças. Poesia enxuta e depurada, não escondendo as leituras de alguns dos melhores poetas contemporâneos, é uma revelação para todos aqueles que gostam que as palavras sejam bem tratadas, sem precisarem de se torturar na praça pública ou de caminhar por caminhos exotéricos)
Foto: JRR (O poeta com D. Joana, viúva de Sebastião da Gama, em casa desta)
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