terça-feira, 9 de junho de 2009

FLOR DE SAL (Excerto II)

DO CASAMENTO INFELIZ DE MARIA MADALENA E DE COMO ELA SE ACABARA POR LIVRAR DELE


Maria Madalena tinha ainda bem presente a forma como tivera de enfrentar a sociedade da vila onde fora nascida e criada, tudo porque ousara libertar-se da clausura de um casamento infeliz, mesmo se o marido, alcoólico inveterado e mulherengo, lhe batia até deixar marcas, entre outras ofensas que preferia agora ignorar. Na inocência dos seus vinte anos, e se a principio acolhera com resignação aquela escolha da família, uma revolta surda ia-se apoderando dela, até à gota de água de uma amante mantida pelo cônjuge, sem pudor ou recato. Desobedecendo à lei e aos costumes, resistiu tenazmente às fantasias libidinosas que Castro Franco, o marido, de quando em vez, sobre ela, qual presa agrilhoada, intentava prepretar. Valera-lhe a mãe, senhora bondosa e austera, que conhecendo o descalabro físico e moral em que a vida da filha se havia transformado, lhe fornecia discreto, mas vital apoio, naquela luta desigual pela dignidade. Ajudara-a até a afastar-se, a pretexto de maleita do espírito, para casa de uma tia, numa vila que distava mais de duzentos quilómetros por entre acessos ruins. Aí ficou, até que as suas faces voltassem a ficar rosadas e, por vezes, até, chegar a assomar naquele rosto doce, um sorriso, se não de felicidade, pelo menos de alívio pela distância e esquecimento que aquela sempre traz.

O marido, contudo, não desistira e ameaçava constantemente ir por ela, apesar de advertido para o facto de a sua presença não ser benquista e nisso o tio mostrava uma bravura diferente do pai e, economicamente bem acolchoado na vida, dera ordens aos criados para manterem discreta vigilância a fim de se assegurar que Castro Franco não voltava a contactar a sobrinha sem o consentimento dela. Ameaçada pela justiça, fora nesse contexto que haveria de conhecer e apaixonar por Gouveia e Mello, que após terminar o seu curso de direito, se fixara, provisoriamente, na terra de origem dos pais, onde começara a exercer advocacia. Fora nessa qualidade que o tio os apresentara e ele passara a frequentar, cada vez com mais assiduidade, o solar da família.

Os serões eram agora mais animados com a presença quase diária do Advogado que, apesar do seu ar sisudo, parecia transfigurar-se na presença de Maria Madalena. Esta, por seu turno, quase se esquecera da triste condição em que, ainda tão nova, se vira mergulhada, sem vislumbrar saída, nem ânimo para o fazer. Quando a jovem senhora, a instâncias do tio, se recreava tocando, com graciosidade, peças de alguns conhecidos compositores clássicos, que lhe evocavam uma infância feliz, onde todos os sonhos ainda eram possíveis, Gouveia e Mello ficava extasiado a ouvi-la, fixando demoradamente aquelas mãos ágeis que voavam sobre as teclas, provocando sons vibráteis, que não deixavam de o inquietar. Outra noite fora a sua vez de, encorajado pelos anfitriões, recitar poemas de autores portugueses, como era comum fazer nas tertúlias. E como declamava bem, pensava no seu íntimo Maria Madalena.
Nos finais de tarde dos dias mais quentes, deambulavam pelo jardim frondoso, plantado há mais de um século por Moreira da Cunha, avô de Sampaio e Cunha, seu tio. Fora aí que, certo dia, Gouveia e Mello, recatadamente, mas com ternura, lhe endereçara tímidas palavras que faziam advinhar intenções que iam para além da simples amizade o que, decididamente, lhe fez estremecer o coração, apesar de não ser nada que já não suspeitasse.

Apesar dos seus esforços, não conseguiu evitar que, indomáveis, um par de lágrimas fossem mansamente caindo pelo rosto, enquanto lia a prosa que, sob a forma de alegoria, não podia ter outro destinatário senão ela.


Arlindo Mota


Foto apm