quarta-feira, 27 de novembro de 2013

CARTA DE CHAMADA

                                                                                        Foto: apm


CARTA DE CHAMADA

 

O embarque fora breve, quando acordou

as malas há muito repousavam no porão

 

num breve olhar, bífido, sumariou as aves

enquanto relia absorto a carta de chamada

buscando nos mares a rota das gaivotas

 

que sobrevoavam o navio ainda ancorado

estabelecendo imprevisíveis sinapses
como um farol alado sinalizando a costa


arlindo mota

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

MEU AMIGO MANUEL




Contigo aprendi que os dias e as noites

não existem quando conversamos sobre livros

que  os livros podem ser orais ou escritos

- isso só descobrimos mais tarde -

 

Lembro-me das tuas palavras

isentando a vida do ónus do tempo

como quem diz não tenho pressa

que estou cá porque quero estar

 

de momento estás afónico e

não  sabes se um dia recuperarás a voz

eu continuarei a ler-te  em braille

no meu canto preferido da livraria

 

mesmo junto ao chapéu e bengala

sinal inequívoco da tua presença

 

arlindo mota

24 Outubro de 2013

(in memorian de Manuel Medeiros “O Velho Livreiro”)


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

POETA DO MÊS: ANTÓNIO RAMOS ROSA


 
 
 
 
                                                                                                     foto: apm
 
 
ATÉ ONDE VÓS ESTAIS

 
Oh presenças amigas, ó momento

em que alongo o braço e toco em cheio os rostos

A minha língua abriu-se para dizer a face

do vento que percorre as vossas vidas.

 

Estou perante a noite mais profunda,

a delicada noite das raízes: vejo rostos

vejo os sinais e os suores das vossas vidas.

 

Atravesso árvores submersas, ruas obscuras,

poços de água verde, e vou convosco ter,

Minhas faces lívidas, mãe, amigos, amores

 

A terra que penetro é este chão de terra

com as raízes feridas, com os ferozes pulsos,

A vertente que desço é uma subida às vossas vidas

 

António Ramos Rosa (1924-2013)
   O Centro Na Distância, 1981

 

domingo, 18 de agosto de 2013

POR VEZES ACONTECE...

 
 
                                                                                                         foto: apm


POR VEZES ACONTECE…


exíguos catres, toscas e frágeis naus,

para o mundo que ousámos pesquisar,

nas viagens que fazemos companheira,

pelo mar que só distingo ao navegar.



por vezes acontece, um súbito momento

em que o grito dificilmente se sustém,



… e quem ali estiver na amurada

há-de sentir na voz que se anuncia,

por entre o vento suão e a nortada,

que o ser existe, o pensamento, a ira,

o desespero, o sonho e a loucura,

que tudo vale a pena, enquanto a vida dura.



arlindo mota





terça-feira, 25 de junho de 2013

POETA DO MÊS: AL BERTO



VÊM SÔFREGOS os peixes da madrugada

beber o marítimo veneno das grandes travessias

trazem nas escamas a primavera sombria do mar

largam minúsculos cristais de areia junto à boca

e partem quando desperto no tecido húmido dos sonhos

 

vem deitar-te comigo no feno dos romances

para que a manhã não solte o ciúme

e de novo nos obrigue a fugir

vem estender-te onde os dedos são aves sobre o peito

esquece os maus momentos a falta de noticias a preguiça

ergue-te e regressa

para olharmos a geada dos astros deslizar nas vidraças

e os pássaros debicarem o outono no sumo das amoras

 

iremos pelos campos

à procura do silente lume das cassiopeias
 
Al Berto

 

in Vigílias


quinta-feira, 6 de junho de 2013

PINTOR...



PINTOR


ignorando o rigor da geometria
usava as ferramentas do engenho
sobrava-lhe a dor quando sorria

mão decepada de argúcia e de traço
pintava com os olhos doloridos
ou pelo tacto

entre o afago de um goivo que se abria
ávidas, as mãos iam tecendo
a luz do dia

sem abrandar o passo
definia um estreito hiato

fímbria que mediava entre ela e a
vida



arlindo mota

sábado, 18 de maio de 2013

INICIAÇÃO


                                                        foto: apm
 
o amor é como o tempo, as estações,

o ciclo e o acaso, senão a intempérie

por vezes acontece a inércia,

ou o escorrer do tempo entre os dedos,

como se os dias fossem só segundos

e os anos nos faltassem para viver.


mas a sabedoria dos astros nos ensina:

o horóscopo és tu.
 
 
arlindo mota
 
 
 

BOUTIQUE DOS RELÓGIOS PÚBLICOS: Castelo de Palmela

                                                                                            Foto: apm

sexta-feira, 3 de maio de 2013

ANTÓNIO CANTEIRO: mãe

                                                                                                          foto: apm
 
mãe



se à noite mãe!, de joelhos esmagados no chão,

 a voz e as mãos coladas no peito, eu te ouvir

rezar…se à noite, mãe!, com os dedos das mãos

abertas, asas de gaivota no ar, iguais ao céu

nublado, eu te ouvir rezar… se à noite, mãe!, a

pele das mãos, ninho cravado de rugas, teias de

silêncio, a dormir no regaço, eu te ouvir rezar…

se à noite, mãe!, à última força dos braços,

escreveres na parede, a palavra: «céu», és

andorinha que aprendeu a voar…

 

António Canteiro*

 
*Com a devida vénia. Este poema faz parte do livro “O Silêncio Solar  das Manhãs”, obra recém-galardoada com o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2013,certame criado em 1988, cujo júri integrou João Reis Ribeiro, José António Chocolate e Arlindo Mota.

 




sexta-feira, 26 de abril de 2013

HOJE NÃO DESCI A AVENIDA...


                                      painel de Mariana Dias, Kid´s Guernica 2011, Escola Anselmo de Andrade

                                                             
hoje não desci a avenida não perguntes porquê

não, não era o pólen como da outra vez…

hoje fiquei olhando do outro lado do rio

como se fora o dia de todos-os-santos

que vi tudo de negro ou os meus olhos já não vêm tanto?


hoje atravessei a ponte meia lisboa sob o meu olhar

e tu não estavas lá para me receber

porque te foste embora mãe?

desta vez não me tiravam dos teus braços

e a ponte já mudou de nome…


porquê as lágrimas mãe? onde está aquela força

disfarçada de sorriso enquanto me afagavas

e as sombras deambulavam pela casa?


não são perguntas mãe ou lendas de rainha

(nem cravos nem rosas)

a força que guardo das tuas mãos nas minhas


arlindo mota

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

A PALAVRA

                                                                                                        Foto: apm

BOTERO EM OVIEDO

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

ADIVINHA



Se os anos são primaveras

Em início de estação.

Adivinha em forma de ave:

Ainda faz ninho o Verão?



Pelos dias, pelas noites,

Em que a razão se desfia,

Se transforma, se recria:

Ternura, coita de amor?

Ou apenas mais um dia?


Solução: Inverta a cronologia.


arlindo mota



ANO NOVO

 

                                                                                                         Foto: apm
ANO NOVO
J. Sebastián Bach. Saludo

Moderno como las olas

antiguo como la mar

siempre nunca diferente

pero nunca siempre igual



Eduardo Chillida, in Preguntas