sábado, 2 de julho de 2011

PAULO ASSIM: Retrato a Sépia



















O meu avô tinha a tez dos mouros e o ar sereno
de quem descasca laranjas pela madrugada.
Falava-me do mar como quem olha
para os sulcos sibilinos das mãos.

Os peixes bebem toda a água do mar e não sabem.
Se soubessem, dizia o meu avô, quereriam ser homens.
Mas os homens têm já todo o mar nos olhos, sobretudo quando choram,
e se os peixes soubessem disso talvez preferissem ser pássaros,
que é o que os homens desejam ser quando desafiam o mar.
(...)

Na sala do meu avô havia um búzio
que me cabia na concha das duas mãos.
Se o aproximasse do ouvido,
aproximava o mar inteiro.

Paulo Assim

(in Retrato a Sépia, livro do autor recentemente distiguido com o prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, de cujo júri fiz parte, com João Reis Ribeiro e José António Chocolate Contradanças. Poesia enxuta e depurada, não escondendo as leituras de alguns dos melhores poetas contemporâneos, é uma revelação para todos aqueles que gostam que as palavras sejam bem tratadas, sem precisarem de se torturar na praça pública ou de caminhar por caminhos exotéricos)

Foto: JRR (O poeta com D. Joana, viúva de Sebastião da Gama, em casa desta)

1 comentário:

sofia b. disse...

Eis um texto cuja atmosfera me remete para a poesia de Eugénio de Andrade, com um toque pessoal que aprecio. Vou estar atenta a um poeta...Assim.