VIVER SEMPRE TAMBÉM CANSA
Viver sempre também cansa.
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
Folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
E há bairros miseráveis sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?
Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.
Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
“Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela.”
E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...
De José Gomes Ferreira (1900-1985), o autor das Aventuras de João Sem Medo e do Poeta Militante escolhemos um dos seus primeiros poemas escritos "pura seda das palavras"
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2 comentários:
É tão fácil esquecermo-nos de coisas perfeitas se não as olharmos todos os dias...
Há não sei quantos anos que eu não lia José Gomes Ferreira e em especial este poema com que o próprio considerava que se tinha iniciado na poesia.
Ainda bem que, de vez em quando, alguém nos lembra que a perfeição existe.
Este poema é uma "desistência" - embora goste dele, do autor.
Só morrendo...é que se vive!
E então sim...
vê-se o céu mais azul, ouvem-se com mais nitidez os pássaros, as noites têm mais estrelas e a lua mais luz - embora no rasto do sol.
Frenando Pessoa reflectia "esse morrer" muito bem - tal como eu o senti...quando "acordei, depois da morte".
"DE QUE TE SERVE
O TEU MUNDO INTERIOR
QUE DESCONHECES?
TALVEZ MATANDO-TE
O CONHEÇAS FINALMENTE
TALVEZ ACABANDO...COMECES"
e atenção...isto não se trata de incentivar o suicídio...não!
a morte, é a renúncia ao ego, aos prazeres infinitos que nos massacram diariamente. Chegam através da mente, naquela voz chata, obstinada, birrenta, melosa no mau sentido, despudorada, que nos incita a tudo e a toda a hora... - um simples vício de doces, por exemplo.
Morrer, para todas essas distracções, que mantêm a mente ocupada sem que nos deixe espaço para ouvirmos o coração e a voz que vem de dentro. Só no silêncio e na serenidade de nós, isso se consegue... como também no amor ao próximo...que deve ser actuante, no terreno. Isto e algumas coisas mais, é morrer para a matéria, para nós. Ser o que SOMOS e ter o necessário e utilitário...viver na harmonia, sem supérulos, sem luxo, sem alarde, sem manias.
A partir daí começa a escalada, a sério! e a doer! Não é fácil deixar para trás tudo o que sempre nos serviu de padrão, de modelo, de estupidez, no fundo! As pessoas não pretendem morrer, salvo quando existe uma grande desilusão, ou perda de algo ou alguém. A desilusão, coresponde a demasiadas expectativas...tal como os apegos.
O Caminho faz-se caminhando e não brincando aos polícias e ladrões.
Policiar pensamentos sim, sem nunca deixar que esses demónios internos mentais, nos roubem o coração...o tal amor que nos vivifica e ilumina! E se sente!
E pronto...
Abraço sem expectativas ou apegos, mas consciente de QUEM é QUEM...para sempre! - é o que nõs somos...eternos!
e porque de vivência em vivência...nos vamos sempre encontrando. Verdade!
Por isso isto não mais um encontro, mas sim...um re-encontro.
- mesmo que virtual
Mariz
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