segunda-feira, 15 de agosto de 2011
POETA DO MÊS: JOSÉ GOMES FERREIRA
VIVER SEMPRE TAMBÉM CANSA
Viver sempre também cansa.
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
Folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
E há bairros miseráveis sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?
Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.
Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
“Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela.”
E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...
Poema escolhido para ser dito pelo Grupo Cultural com base na Pró-Asociação dos Liceus dos anos 60 (Teresa Taborda, José Vasconcelos; Vitor Oliveira Jorge; Tito Cardoso e Cunha; José Arnaud; Teresa Bento; Arlindo Pato; Teresa Oliveira, entre outros) e que Eugénio de Andrade na sua Antologia considerou um dos mais belos poemas do século XX. Nascido em 1900, morreu em 1985 em Lisboa. O seu espólio encontra-se na Biblioteca Nacional.
Foto: Arquivo do Diário de Noticias
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3 comentários:
Um poeta/escritor que tive o prazer e a honra de conhecer pessoalmente
Com uma imensa força e profunda sensibilidade
E que, como muitos outros (bendito portugal), tende a cair no esquecimento.
Excelente tua partilha
Abraço
Prazer que não tive...Concordo que paira um certo e imerecido esquecimento.Mas se hoje o que está na moda é o efémero...mas este é dos subsistirá para memória futura, estou certo.
Obrigado pelo diálogo.
abraço
Muito bom o texto.
As magruras do poeta diante da inevitável vida!
Grande abraço!
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